A venda casada está presente na vida do consumidor. Jornais
vendidos com fascículo de cursos, sanduíches que vêm com o brinquedo, venda de
pacotes de turismo atrelado ao seguro. Diversas são as formas de dinamizar o
mercado. Mas quando a prática de subordinar a venda de um produto a outro é
ilegal? O STJ tem algumas decisões sobre o tema, que podem ajudar o consumidor
a reivindicar seus direitos.
Prevista no inciso I do artigo 39 do Código de
Defesa do Consumidor (CDC), a prática é caracterizada pela presença de duas
diferentes formas de condicionamento. Ou por vincular a venda de bem ou serviço
à compra de outros itens ou pela imposição de quantidade mínima de produto a
ser comprado. A jurisprudência do Tribunal não oferece respostas para todas as
situações, mas orienta o consumidor na sua decisão.
Em um julgamento ocorrido em 2008, a Terceira
Turma do Tribunal considerou que o mutuário não está obrigado a adquirir o
seguro habitacional da mesma entidade que financie o imóvel ou por seguradora
por ela indicada, mesmo que o seguro habitacional seja obrigado por lei no
Sistema Financeiro de Habitação. A obrigação de aquisição do seguro no mesmo agente
que financia o imóvel caracteriza venda casada, uma prática considerada ilegal
(Resp 804.202).
É venda casada também condicionar a concessão de
cartões de crédito à contratação de seguros e títulos de capitalização. Em um
caso analisado pelo STJ, os valores eram incluídos nas faturas mensais dos
clientes por uma empresa representante de lojas de departamento. Ela alegou que
o título de capitalização era uma garantia, na forma de penhor mercantil, do
pagamento da dívida contraída junto com o cartão, o que estaria permitido pelo
art. 1419 do Código Civil.
Prevaleceu a tese de que a circunstância de os
títulos de capitalização serem utilizados como garantia do crédito concedido,
semelhante ao penhor mercantil, não seria suficiente para afastar o reconhecimento
da prática abusiva (Ag 1.204.754). Segundo o Código de Defesa do Consumidor, a
prática de venda casada pode acarretar detenção de dois a cinco anos e multa.
Pipoca no cinema
Presente no cotidiano das pessoas, a venda casada
acontece em situações que o consumidor nem imagina. O STJ decidiu, em julgado
de 2007, que os frequentadores de cinema não estão obrigados a consumir
unicamente os produtos da empresa vendidos na entrada das salas. A empresa foi
multada por praticar a “venda casada”, ao permitir que somente produtos
adquiridos em suas dependências fossem consumidos nas salas de projeção (Resp
744.602).
Segundo argumento da empresa cinematográfica, o
consumidor poderia assistir ao filme sem nada consumir, razão pela qual não
havia violações da relação de consumo. Sustentou também que prevalecia o
direito de não intervenção do Estado na economia.
Contudo, para os ministros do STJ que participaram
do julgamento, o princípio de não intervenção do Estado na ordem econômica deve
obedecer aos princípios do direito ao consumidor, que deve ter liberdade de
escolha.
Os ministros consideraram que a venda condicionada
que praticou a empresa é bem diferente do que ocorre em bares e restaurantes,
em que a venda de produtos alimentícios constitui a essência da atividade
comercial.
A prática de venda casada se caracteriza quando
uma empresa usa do poder econômico ou técnico para obstar a liberdade de
escolha do consumidor, especialmente no direito que tem de obter produtos e
serviços de qualidade satisfatória e a preços competitivos, explicou o ministro
Luís Fux. Assim, o Tribunal entendeu que o cidadão pode levar de casa ou
comprar em outro fornecedor a pipoca ou guloseimas que consumiria durante a
exibição do filme.
Refrigerante em posto de gasolina
O Código do Consumidor brasileiro não proíbe o
fornecedor de oferecer promoções, vantagens aos clientes que queiram adquirir
mais de um produto. Mas proíbe expressamente condicionar a venda de um produto
a outro. Assim também é previsto no Código de Defesa da Concorrência (Lei
8.884/94). Em um recurso julgado em 2009, o STJ decidiu que um posto de
gasolina não poderia vincular o pagamento a prazo da gasolina à aquisição de
refrigerante por afrontar o direito do consumidor.
A venda casada se caracteriza quando o consumidor
não tem a opção de adquirir o produto desejado se não se submeter ao comando do
fornecedor. A empresa alegou que o cliente, no caso, não estava forçado a
adquirir refrigerantes, mas, ao contrário, poderia adquirir à gasolina, sem
vinculação alguma à aquisição de bebida. A venda de refrigerantes fazia parte
apenas de um pacote promocional para pagamento a prazo.
De acordo com os ministros, a prática abusiva se
configurou pela falta de pertinência, ou necessidade natural na venda conjunta dos
produtos “gasolina” e “refrigerante”. Embora o fornecedor tenha direito de
decidir se o pagamento será a vista ou a prazo, não pode condicionar a venda de
um produto a outro, como forma de suposto benefício (Resp 384.284).
Lanches infantis
Segundo o advogado Daniel Romaguera Louro, no
artigo “A não configuração de venda casada no oferecimento de produtos ou
serviços bancários”, para configurar a prática abusiva, é imprescindível o
exame dos condicionamentos que determinam a compra e a forma com que essa
ocorre, bem como o perfil do cliente a que está imposta.
Em 2010, o Tribunal determinou a reunião na
Justiça Federal das ações civis públicas propostas contra as redes de
lanchonetes Bob’s, McDonald’s e Burger King, em razão da venda casada de brinquedos
e lanches “fast-food”. A Justiça estadual de São Paulo e a Justiça Federal
daquele mesmo estado analisam ações semelhantes propostas pelos ministérios
públicos estadual e federal (CC 112.137).
O Ministério Público do Estado de São Paulo
ingressou na 18ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo pedindo a condenação
da rede Bob’s. Essa ação civil pública visa à venda em separado de brinde, que
só é entregue com a compra de lanche infantil (lanche Trikids).
Em outra ação civil pública, o Ministério Público
Federal (MPF) pede à Justiça Federal (15ª Vara Cível da Seção Judiciária de São
Paulo) que condene a rede Bob’s e as redes de lanchonetes McDonald’s e Burger
King a não comercializarem lanches infantis com oferta conjunta e, também, que
não ofereçam a venda em separado de brindes. A decisão de mérito ainda não
chegou ao STJ.
Férias frustradas
Diversas são as situações de venda casada
realizadas na oferta de pacote turístico. Em 2008 um consumidor comprou uma
viagem para Cancun, no México, no qual passagem, hotel, serviços de passeio e
contrato de seguro de viagem foram vendidos de forma conjunta pela operadora,
embora a responsável pelo contrato de seguro fosse outra empresa (Resp
1.102.849).
Sofrendo de problemas cardíacos e necessitando de
atendimento médico, o consumidor realizou uma série de despesas no exterior. Na
hora de pagar a conta, requereu a condenação solidaria da operadora de turismo,
que vendeu o pacote de turismo, e da seguradora.
A empresa que vendeu o pacote sustentou que se
limitou a organização da viagem com reservas em fretamento pela companhia
aérea, diárias do hotel, traslado e guia local. Paralelamente ao contrato do
pacote de viagem, pactuou o contrato de seguro com outra empresa, a qual devia
responder pelas despesas realizadas.
Os ministros entenderam que a responsabilidade
solidária da empresa de turismo deriva, no caso, da constituição de uma cadeia
de fornecimento com a seguradora que realizou contratação casada, sem que se
tenha apontado ação individual da voluntariedade do consumidor na determinação
das condições firmadas.
O STJ tem decisões no sentido de que uma vez
comercializado pacote turístico, nele incluíndo transporte aéreo por meio de
vôo fretado, a agência de turismo responde pela má prestação do serviço (Resp
783.016). Outra decisão garante que agência de viagens responde por danos
pessoais ocasionados pelo mau serviço prestado em rede hoteleira, quando
contratados em pacote turístico (Resp 287.849).
Seguro em leasing
Em se tratando de venda casada, somente o caso
concreto pode dar respostas para um suposto delito. Ao analisar um processo
sobre arrendamento mercantil em que impuseram ao consumidor a responsabilidade
de pagar o seguro de um contrato de leasing, o STJ decidiu que a prática não
era abusiva. O seguro, no entanto, poderia ser feito em seguradora de livre
escolha do interessado, sob o risco de ferir o direito de escolha do
consumidor. (Resp 1.060.515).
Nos contratos de leasing, a arrendadora é
proprietária do bem até que se dê a efetiva quitação do contrato e o
arrendatário faz a opção, ao final do negócio, pela compra do produto. O
Tribunal considerou que nos casos de leasing, o consumidor é responsável pela
conservação do bem, usufruindo da coisa como se dono fosse, suportando, em
razão disso, riscos e encargos inerentes à sua obrigação.
Os ministros entenderam, na ocasião, que não se
pode interpretar o Código do Consumidor de modo a tornar qualquer encargo
atribuído ao consumidor como abusivo, sem observar que as relações contratuais
se estabelecem, igualmente, através de regras de direito civil.
“Ante a natureza do contrato de arrendamento
mercantil ou leasing, em que pese a empresa arrendante figurar como
proprietária do bem, o arrendatário possui o dever de conservar o bem
arrendado, para que ao final da avença, exercendo o seu direito, prorrogue o
contrato, compre ou devolva o bem”, justificou o desembargador convocado,
ministro Honildo Amaral de Mello Castro.
Consumo mínimo
A segunda hipótese prevista pelo artigo 39 inciso
I, que regulamenta venda casada no CDC, é aquela que o fornecedor exige que se
adquira uma quantidade mínima do produto. É o típico caso em que o fornecedor
garante a venda “se” e “somente se” o consumidor adquirir certa quantidade do
produto.
Em 2011, o STJ pacificou o entendimento de que nos
condomínios em que o total de água consumida é medido por um único hidrômetro,
é ilegal a cobrança do valor do consumo mínimo multiplicado pelo número de
unidades residências (Resp 1.166.561).
O recurso foi interposto pela Companhia Estadual
de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), que pedia o reconhecimento da
legalidade da cobrança de água multiplicando a tarifa do consumo mínimo pelo
número de unidades no condomínio, nos meses em que o consumo registrado tiver sido
menor que a cota estabelecida. A companhia alegava que essa modalidade de
cobrança é legal e não proporcionava lucros arbitrários à custa do usuário.
Os ministros da Primeira Turma à época
consideraram que a Lei 6.528/1978 e a Lei 11.445/2007 instituíram a cobrança do
serviço por tarifa mínima como forma de garantir a sustentabilidade
econômico-financeira dos serviços públicos de saneamento básico. Isso permite
aos usuários mais pobres um consumo expressivo de água a preços módicos.
A cobrança, no entanto, consistente na
multiplicação da tarifa mínima pelo número de residências de um condomínio não
tinha amparo legal. Para o relator, ministro Hamilton Carvalhido, não se pode
presumir a igualdade de consumo de água pelos condôminos, obrigando os que gastaram
abaixo do mínimo a não só complementar a tarifa, como também a arcar com os
gastos de quem consumiu acima da cota.
Resp 804202 - Ag 1204754 - Resp 744602 - Resp
384284 - CC 112137
Resp 1102849 - Resp 783016 - Resp 287849 - Resp
1060515 - Resp 1.166.561
Fonte: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=108301